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Maurício Castro

A ideologia debaixo da língua

15:00 15/06/2008

Há poucos dias, a intervençom da ministra espanhola da Igualdade, utilizando numha comissom parlamentar, segundo depois explicou, por lapsus linguae, a forma ‘membra’ como feminino de ‘membro’, provocou a reacçom imediata e unánime da masculinidade ferida polo que nalgum meio chegárom a qualificar de ‘maltrato ao idioma’.

Nem simpatizo com o PSOE, nem me preocupa especialmente a saúde do espanhol, mas sim me parece digna de comentário essa reacçom quase unánime, que juntou no mesmo coro de agravados algum deputado do PSOE como Alfonso Guerra, jornalistas como Pedro J. Ramírez e académicos ‘de la lengua’ como Gregorio Salvador.

O primeiro –Alfonso Guerra– pediu que se deixasse “viver sozinha” a língua espanhola, evitando impor critérios elitistas à sociedade. Curiosa pretensom dirigida à língua que detém a oficialidade obrigatória em todo o Estado, contando com um potente aparelho institucional como sustento, e que goza de muitos milhons de euros anuais dedicados à promoçom internacional através, por exemplo, do Instituto Cervantes.

Por seu turno, Gregorio Salvador, filólogo e membro da Real Academia Española (RAE), mais partidário do ‘intervencionismo’ em matéria lingüística, aproveitou também a polémica para pedir, literalmente, que o governo espanhol se deixe de “brincadeiras de mau gosto, e se ocupe de resolver problemas de desiguladade preocupantes que há em Espanha, como as dificuldades que tenhem os pais em algumhas comunidades para que os filhos estudem castelhano”.

E quanto ao presidente do jornal conservador El Mundo, Pedro J. Ramírez, praticou o velho recurso da reduçom ao absurdo, na tertúlia radiofónica em que participa, mostrando umha grande sensibilidade com a integridade do idioma espanhol e ridicularizando as pretensons igualitárias em matéria de usos lingüísticos.

Contra as idealistas pretensons de quem defende qualquer língua como essência alheia ao meio social que lhe dá vida, já nos anos vinte do século XX, um lingüista marxista da Rússia soviética formulou um princípio incontornável na análise objectiva da realidade social das línguas: o signo lingüístico é, por definiçom, ideológico.

Com efeito, Mikhail Bakhtin, um dos grandes da ciência lingüística do passado século, descreveu como qualquer formulaçom lingüística, desde que constitui umha representaçom da realidade e nom a realidade mesma, supom por definiçom umha projecçom influída por quem cria o discurso e polas condiçons em que se produz. Anteriormente, alguns antropólogos decimonónicos defenderam o contrário: que eram as línguas que determinavam as culturas, o pensamento e a visom do mundo das pessoas e dos povos.

Hoje sabemos que as línguas som, com efeito, produtos sociais, materializaçons do pensamento e das ideias confrontadas no palco social da comunicaçom, submetidas portanto ao filtro ideológico e aos valores dominantes de cada comunidade lingüística: ao contrário do que afirma o referido deputado jacobino do PSOE, as línguas nom podem “viver sozinhas”, porque dependem das pessoas, dos grupos e das formaçons sociais que as recriam continuamente, inclusive em ámbitos em que nom existe conflito lingüístico como o que corresponde à sociedade em que vive Alfonso Guerra.

Os que, como ele, como Gregorio Salvador ou como Pedro J. Ramírez, clamam em defesa das tábuas da lei da gramaticalidade, como se essas nom fossem também produto de umha concepçom social concreta, abrigam umha concepçom classista e sexista própria das elites que vetárom, em nome da ‘ordem natural das cousas’, o acesso das mulheres ao sufrágio. As mesmas ideias que ainda servem para vetar, por exemplo, a integraçom da populaçom cigana nos bairros das cidades galegas.

Nom sei se no futuro o espanhol, o catalám ou o galego-português irám habilitar, concretamente, um feminino da forma ‘membro’, certamente anti-etimológica e percebida como malsoante, critério estético e como tal mais subjectivo do que objectivo. Sei é que outras formas também contrárias às leis da lingüística assepticamente machista fôrom já habilitadas com sucesso, violentando os bons costumes académicos e o machismo oculto sob a pele do gramático. Ou como se explica, entom, a correcçom actual de substantivos como ‘presidenta’ e ‘juíza’, entre outros muitos até há poucos anos excluídos dos padrons de qualquer das línguas referidas, com base em critérios gramaticalistas?

As línguas som património exclusivo das sociedades humanas e nom entes alheios ou com vida própria para além de aquilo que os grupos sociais determinarem em cada altura histórica. Sendo tam necessário banir as flagrantes discriminaçons de que som alvo diferentes colectivos sociais por razom de sexo, de raça, de classe ou de procedência, as línguas nom podem ficar à margem desse combate pola igualdade e pola justiça, em nome de reaccionários purismos académicos. E, ainda menos, servir de álibi para quem só quer perpetuar as dominaçons subjacentes a cada uso lingüístico discriminatório.

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Mauricio Castro

Maurício Castro naceu en Ferrol en 1970. É profesor de portugués, actualmente adscrito á Escola Oficial de Idiomas da Coruña, despois de dous anos de docencia en Badaxoz. »



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